À semelhança de quem, repleto de esperas e espantos, parte em viagem (e,
encarnados nas águas do livro, decerto – com ele – partimos), acariciamos nosso
coração-marinheiro na proa de uma pergunta: “Seremos felizes aonde nos leva?”.
Fundamental no singrar de qualquer humanidade, tal questão, navegante das
palavras que agora transbordamos, nos leva ao horizonte do mais recente
poemário bilíngue (português-inglês) de Thereza Christina Rocque da Motta,
Marco Polo &; A Princesa Azul. “Entre ilhas nebulosas, mares cheios de
peixes, sob tormentas e sol a pino”, aqui fazemos eco a “paisagens [que] se
mostrem por inteiro” e, nesse sentido, ressoamos logo no princípio – e como
princípio de todo o nosso soar – a hesitação paradoxalmente afirmativa da
princesa poetizada, “linda como o céu”, na medida em que de sua voz nos
apropriamos quando, adaptando-a à primeira pessoa do plural, repetimos o verso:
“Seremos felizes aonde nos leva?”
Aonde nos leva Marco Polo:
a um mundo plural em que toda pessoa a seu lado é primeira e, por esse motivo,
se faz título dos poemas inscritos no primeiro bloco da obra: “A odalisca”, “A
cortesã”, “A imperatriz”, “A mulher de Ormuz”, “A esposa”, “A filha” e, claro,
“A princesa azul”, que, por sua vez, batiza também a segunda e última série do
livro-saga. Destarte, note-se, não por acaso, que essas personagens evocadas
pela pena de Thereza Christina Motta são femininas e, na qualidade de
interlocutoras de Marco Polo, com direito à palavra e a tomar partido no
discurso poético, passam de coadjuvantes a protagonistas de algum passageiro-eterno
momento do viajante. A leitura da orelha nos serve de âncora: a poeta revela
que, por três anos, se dedicou a descobrir e celebrar as mulheres que Marco
Polo conheceu: “Quantas mulheres são necessárias para se fazer um grande
homem?”. Eis mais uma pergunta inquieta a acompanhar-nos na bagagem, junto
àquela que, ainda nos mirando, não cansamos de contemplar: “Seremos felizes
aonde nos leva?”
Aonde nos levam as
mulheres de Marco Polo e/ou de Thereza Christina Motta (não importa, se também
delas já somos, por elas abduzidos no transe da leitura): à felicidade de uma
“vida nova e inesperada a se descortinar, além”; de uma história nova na qual o
feminino receba o peso que merece, e mais ainda a leveza que lhe cabe, sem
subjugar-se a uma viciosa invisibilidade concedida e consentida pelas versões
oficiais do branco, europeu, masculino. Conforme esclarece a autora, “nas
biografias elas não existem, ou se conhecemos seus nomes, desconhecemos o
quanto sofreram ou choraram por eles [pelos homens históricos], e muito menos o
que disseram”. Espraiando-se em uma Thereza que também é Christina, muitas
mulheres em uma cantam o homem que valeu por muitos. Com uma espécie de
contundência delicada, esta escrita também nos designa porque, nascendo mítica,
se nos empresta para que reencontremos o sentido mágico e, por isso mesmo,
verdadeiro da nossa humana jornada. Nadamos a vertigem.
Se não caminhamos
sozinhos, se caminhar é conviver, abrir-se ao outro, no estabelecimento dos
elos que nos libertam para a vida, “serpenteando a terra, à procura de seu
destino”, então afirmamos: somos felizes aonde Marco Polo e a Princesa Azul nos
levam. Somos felizes porque somos levados e não apenas levamos. Porque não
somos apenas sujeitos de, mas sujeitos aos espaços, temporalidades e personas
“por onde já nos perdemos”.
Perdemo-nos no livro de
Thereza Christina Motta para encontrá-lo por sob os marcos e entre os polos de
cada um de seus encontros: estará conosco mesmo depois de partirmos.
Deixamo-nos ouvir aquilo que ele não escreveu nem escreve para nomearmos Mar em
Silêncio esse infinito calar no hiato dos barulhos da onda. Reparemos: os
poemas, em sua precisa contenção e, simultaneamente, em seu sutil vazar de
imprecisas paragens, são barcos na amplitude branca do oceano-página. A autora
dá luz à ribalta desse cenário. Ela valoriza o que, na folha, segue mudo,
porque, imenso, o mundo que convoca. No primeiro bloco, aquosamente
dramatúrgico, performático, o verbo. No segundo, distendido em prosa, quase
aforismático. Em ambos os casos, sobressai o que, do barco, não se vê, mas se
imagina ou se penetra quando dele saltamos: conchas e corais, pedras e polvos,
algas e ostras, aprendizagem de abismos. Abandona-se a palavra em determinado
ponto (no ponto que nunca é, de fato, final), para alcançarmos o que carece de
fundo – o sagrado que nunca se desvela, somente se re-vela e, como véu, veste o
amor que parece, em síntese, ser o personagem central dessas léguas e léguas por
onde seguimos, graças à poiésis, felizes.
Igor
Fagundes é poeta, doutorando e mestre em Poética pela UFRJ, professor de Teoria
Literária na mesma universidade, colaborador do Jornal Rascunho e da Academia
Brasileira de Letras.

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